Aprendendo o português de Portugal

6 de agosto de 2015 | Escrito por Filipe Teixeira | Diário de viagem

No intervalo entre ir embora da Colômbia e ir morar em Portugal, muitas coisas me preocuparam, como ter grana, aprender uma profissão nova, fazer novos amigos. Mas se tem uma coisa com que nunca me preocupei foi com a adaptação ao português de Portugal, afinal é tudo português. Só que não. Na minha cabeça, se eu tinha me dado bem com o espanhol na Colômbia, em Portugal ia ser moleza. Mas, como diria Raul, “minha cabeça só pensa aquilo que ela aprendeu, por isso mesmo eu não confio nela, sou mais eu”.

De fato

3Eu cheguei a Lisboa num sábado e ia começar a trabalhar na segunda-feira seguinte. No domingo, a Eliana, minha amiga de Moçambique, me levou pra conhecer o Parque das Nações. No metrô (que em Portugal é só metro mesmo, sem afrancesamento), ela me perguntou “Então, amanhã, vais de fato?”. Pausa dramática… “Como assim, não é certo o negócio?”, respondi já tenso. Talvez ela tenha achado que o barulho do metrô me atrapalhou e por isso eu não escutei direito, aí repetiu “Amanhã, vais de fato?”. Com um leve desespero, continuei a conversa: “Calma, Eliana, vamo ter calma aqui, não tava tudo combinado, definido? Tu vai comigo amanhã e tudo mais…”. “Sim, vou, só quero saber como vais vestido, afinal é teu primeiro dia”, ela respondeu na maior tranquilidade do universo. “Oi? Como eu vou vestido? Tá mudando de assunto por quê?”. Então ela me explicou que fato é a palavra do português europeu equivalente ao nosso paletó. Mais aliviado, perguntei como eles falavam de “fato” no sentido de “realmente”, “de verdade”. E é só colocar o maldito c antes do t e pronto, de facto. E só depois pensei “Ih, rapaz, onde eu vou arranjar um paletó?”. Mas me fiz de doido e fui de gola-polo, calça jeans e All Star já com a desculpa do “ninguém me avisou” preparada.

Entretanto

português de PortugalNa primeira semana de trabalho, recebi um e-mail da minha gerente de projetos com as instruções para um trabalho. Logo em seguida, recebi outro e-mail dizendo que em breve chegaria outro trabalho. Mais tarde, quando fui tirar uma dúvida, ela me disse “Entretanto aquele outro trabalho já chegou”. Tem alguma coisa errada com esse verbo, pensei. Tá faltando alguma coisa nessa frase. Se o trabalho ia chegar e chegou de fa(c)to, então qual é a desse entretanto? Pra ele estar aí, deveria haver uma negativa em algum momento. Resumi essa filosofia coesiva toda pra ela, que me explicou da maneira mais simples possível fazendo longa uma pausa no meio da palavra: “Entre … tanto”. Aí peguei a ideia, é tipo em espanhol, mientras tanto, ou em inglês, in the mean time, ou o nosso “nesse meio tempo”. Em algum momento da história, “entretanto” virou conjunção adversativa pra nós, mas no português de Portugal ainda permanece seu sentido original.

Asneiras

Em outra oportunidade, quando eu estava traduzindo o Splinter Cell, minha chefe me perguntou porque eu tinha escrito tantas “asneiras”. Respirei fundo já meio puto (que em Lisboa significa criança do sexo masculino) com o tratamento e disse “Oi?”. Aí a Manu, minha colega de trabalho carioca, percebendo o que poderia acontecer, me disse que “asneira” significava “palavrão”, e tudo correu da melhor maneira. Em tempo: o original em inglês estava cheio de palavrão, eu só traduzi.

Sempre

Já fazia uns meses desde que eu tinha chegado a Lisboa. Toda sexta-feira eu almoçava num restaurante perto do trabalho e normalmente a Manu e a Inês iam comigo. Um dia, a Manu não foi trabalhar, aí a Inês me perguntou: “Sempre vais almoçar hoje?”. É muito advérbio pro meu gosto. E ao perceber meu semblante confuso, ela me faz a pergunta que eu mais ouvi enquanto morei em Portugal: “Não é assim que vocês dizem?”. Apesar de ser até fácil de entender o que ela quis dizer, não é tão simples no momento em que você ouve a frase. Mas deu tudo certo e almocei com a Inês naquele dia, mas não sempre, que neste caso é apenas um intensificador.

O bico na boate

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No Carnaval de 2013, fui a uma cidade no norte do país chamada Covilhã. Fui a convite de uma amiga que eu tinha conhecido meses antes em Lisboa. Quando voltei, em uma conversa com a Inês, ela me perguntou como tinha sido a viagem. E entre um episódio e outro narrado, falei que minha amiga fazia mestrado em Moda na Universidade de Covilhã e nos fins de semana fazia uns bicos numa boate. Aí a Inês arregalou os olhos e, estarrecida, perguntou: “Mas por que ela faz isso, os pais dela não a ajudam?”. Por um momento pensei que não houvesse em Portugal a cultura de estudantes que trabalham ou que ela tinha visto um anjo numa torta flamejante dizendo “Façam-se Beatles com um A”, mas não era nada disso.

Eu respondi simplesmente que ela queria ter uma renda extra e que além disso ela se divertia, afinal grande parte dos amigos dela frequentavam a boate. “Que horror!”, foi tudo que a Inês conseguiu responder. Aparentemente eu tinha dito algo de muito grave. E tinha mesmo. Bico é um dos sinônimos para sexo oral e boate é um jeito pejorativo de chamar discoteca. Aí vocês imaginam o que a Inês pensou que minha amiga fazia nos fins de semana em Covilhã.

E eu acabei entrando na onda

Eu resisti o quanto pude à influência da variante europeia da nossa língua. Não que eu tenha algo contra, a questão é que meu trabalho exige que eu mantenha meu português o mais abrasileirado possível. Mas tendo morado lá mais de dois anos, involuntariamente me apropriei de alguns termos e expressões que são mais comuns daquele lado do Atlântico. Já disse pormenor no lugar de detalhe, brutal no lugar de que massa!, levantar dinheiro no lugar de sacar dinheiro e por aí vai.

E você, leitor, já se viu em uma situação de lost in translation, mesmo que na sua própria língua? Responda nos comentários.

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Escrito por Filipe Teixeira

Escritor amador e ansioso profissional.