Idiomas – “Com licença, posso ter um guaraná?”

31 de maio de 2014 | Escrito por Filipe Teixeira | Autores convidados

por Tammer Castro, de Braga, Portugal.

A frase título deste texto, sem sombra de dúvida, soa estranho aos ouvidos de muitos falantes nativos do português brasileiro. A verdade é que muitos de nós, ao passarmos algum tempo fora do Brasil, acabamos acidentalmente por formar frases como essa, além de outras construções como “fazer uma decisão” ou “andar o cachorro”. Mas por quê? O que leva uma pessoa que falou português todos os dias durante a vida quase toda a falar estranho? Isso acontece com todo mundo que mora fora?

Tudo começou quando o Duduzinho saiu de Fortaleza para o Rio de Janeiro para visitar parentes. Aos dez anos de idade, Duduzinho nunca tinha viajado de avião, portanto para ele aquilo tudo era uma experiência nova. Novos ares, novas pessoas e, consequentemente, um novo sotaque. Uma semana depois, Duduzinho voltou a Fortaleza “chiando” mais do que a Verdinha 810 fora de sintonia. Duduzinho pediu ao pai para lhe comprar doix paxtéix e até chegou a pedir sacoléna Praia do Futuro. Naturalmente, seus colegas acharam aquilo tudo muito estranho, e riam-se bastante às custas do coitado. “Diabeissaí, mah, o Duduzim tá querendo se amostrar, só porque foi pro Rio!” Mas o Duduzim fazia de propósito? Ele estava realmente querendo se amostrar, ou o chiado saía sem querer? O fato é que o nosso cérebro age como uma esponja, absorvendo muito do que ouvimos (nem tudo) e, principalmente antes da puberdade, é natural que certas expressões e sotaques a que somos expostos em um ambiente diferente do nosso acabem por aparecer após o retorno ao nosso ambiente. O mesmo também pode acontecer com adultos, mas de forma menos intensa, ou não. Tudo depende da quantidade absorvida.

Vejamos agora o caso do Marcelo. Ele tem 21 anos, formado pela Universidade Estadual do Ceará e decidiu que estava na hora de mudar a sua vida radicalmente. Arrumou as malas e embarcou para Orlando, nos Estados Unidos. Marcelo viveu por oito anos naquele país, retornando ao Brasil pela primeira vez somente após dois anos e meio. Ao desembarcar em Guarulhos, dirigiu-se a um dos elevadores, onde já havia outro senhor que educadamente segurou a porta para que ele entrasse. “Thank you!”, disse Marcelo, seguindo de um pensamento imediato no estilo “Thank you? Como assim? Que porra é essa?”. Ele próprio não conseguia entender por que a primeira coisa que ele disse em solo tupiniquim foi em inglês. Ao chegar a Fortaleza, seus amigos notaram algo diferente na fala do Marcelo. Ele mantinha as expressões típicas do linguajar fortalezense, mas vez por outra falava coisas que não se diziam em qualquer estado do Brasil, por serem traduções diretas do inglês. E então? O Marcelo também estava querendo se amostrar?

Para quem não tem o hábito de viajar, ou para quem sempre morou na mesma cidade, é muito fácil julgar um conhecido seu por ter mudado a maneira de falar após um tempo morando fora e taxá-lo de arrogante, por realmente não entender como isso funciona. Nem o Marcelo nem o Duduzinho fizeram por mal. O primeiro, após chegar aos Estados Unidos, apesar de viver em uma cidade onde há uma imensa comunidade de brasileiros, acabou por fazer amigos norte-americanos, com o intuito de praticar o idioma, que ainda não era fluente. Pelo fato de, em dois anos e meio, o Marcelo falar inglês 90% do tempo (estatísticas estimadas, obviamente), o português dele ficou meio que “enferrujado”, e muitas vezes, quando ligava para casa, tinha dificuldade de lembrar algumas palavras que lhe vinham à mente imediatamente em inglês. O Duduzinho, por sua vez, obviamente distinguia que se tratavam de dois sotaques diferentes, e também sabia que sacolé era o dindim carioca (ou gelinho, suquinho – eu confesso que não vejo a necessidade de tantas palavras diferentes para isso). O seu cérebro, porém, processou aquilo com uma velocidade superior à sua capacidade inibitória. Ou seja, apesar de saber que no Ceará se comem dois paxtéis, ele reproduziu os sons que ouviu durante a sua viagem ao Rio antes que pudesse acessar os sons do seu sotaque de Fortaleza. O Marcelo disse “Thank you!” ao educado senhor do elevador, não por não saber mais dizer “Obrigado!”, mas porque, devido à imersão no ambiente de língua inglesa, aquilo lhe saiu mais rapidamente do que o correspondente em português. Em dois anos e meio, ele disse “Thank you!” muito mais vezes do que “Obrigado!”. Já sonhava em inglês, contava mentalmente em inglês, seus pensamentos do dia-a-dia eram em inglês, logo a readaptação ao ambiente de língua portuguesa era necessária. Menos de uma semana depois, estava lá o português fortalezense do Marcelo, digamos, 95% de volta.

Como disse anteriormente, isso não significa dizer que quem mora fora deixa de saber falar português direito. Tudo depende da quantidade absorvida pelo cérebro, ou seja, à exposição ao novo idioma. O catarinense Rodrigo, por exemplo, que também morou em Orlando, escolheu dividir apartamento com brasileiros, trabalhar com brasileiros, frequentar o restaurante Camila’s na International Drive três vezes por semana e ouvir Araketu no último volume a caminho do trabalho. O Marcelo aprimorou o inglês muito rapidamente, e o Rodrigo só sabia que o Araketu era bom demais. Por ironia do destino, ambos foram se conhecer muito tempo depois, num albergue para viajantes em Kuala Lumpur. Uma mochileira irlandesa, que por acaso tinham acabado de conhecer, fez as apresentações. Depois de terem trocado umas três ou quatro frases, o Rodrigo elogiou o português do Marcelo, mas disse que ele parasse de fingir ser brasileiro. Na cabeça do Rodrigo, o Marcelo era um americano que falava português muito bem, mas com um sotaque aparente, e que aprendeu o idioma para se passar por brasileiro porque ser brasileiro é cool. O cearense deu as costas para o seu compatriota e o deixou falando sozinho. Não trocaram contatos, nem se adicionaram no Facebook, nem marcaram de jogar pôquer após o retorno a Orlando. A diferença entre os dois casos é justamente a quantidade de exposição. Enquanto o Marcelo falava 90% inglês e 10% português, a proporção do catarinense era possivelmente o reverso.

O atrito linguístico, ou erosão linguística, nome técnico desse fenômeno, é algo que afeta muitos imigrantes, independentemente da proximidade entre os idiomas, podendo até ocorrer com falantes de duas variantes da mesma língua. Outro caso é o do Jeremias, que saiu da Bahia em 2006 para morar em Portugal, e como tem medo de avião, só viaja de autocarro e comboio, e já não vai estar produzindo tantos gerúndios quanto seus primos que ainda moram em Vitória da Conquista. Baseado nos casos mostrados acima, pode-se concluir que o Jeremias acabou por internalizar certas estruturas devido à exposição intensa ao português europeu. Os domínios imediatamente afetados são aqueles relacionados com os aspectos interpretativos da língua, ou seja, os domínios lexical, semântico e pragmático. Os falantes em imersão na segunda língua começam por esquecer palavras que pouco usavam na língua mãe. Ao ouvirem essas palavras raras, acontece também de não lembrarem o que significam, ou em que contexto as devem usar. O domínio sintático também pode ser afetado, ou seja, a frase na língua mãe pode ser emitida com a estrutura frasal da segunda língua, desde que haja uma interação entre o domínio sintático e outros domínios. Apesar de muito raro em idiomas tipologicamente distintos, também pode ocorrer atrito no domínio fonológico, ou seja, certos sons da segunda língua podem passar a aparecer na produção da primeira. Mais uma vez, tudo depende da quantidade de exposição à segunda língua, e da idade do falante (quanto mais jovem, mais susceptível ao atrito), entre outros fatores de âmbito político e social, ou até mesmo orgulho.

Em meio a tantas vantagens trazidas pelo bilinguismo, o atrito acaba por soar como uma desvantagem. Nem o Marcelo nem o Jeremias estão felizes com a influência constante da segunda língua na primeira (quando a percebem). Enquanto isso, o português do Rodrigo segue cada vez melhor. A intenção deste texto não foi de sugerir que parem de aprender línguas, ou de viajar. Pelo contrário, foi de esclarecer um tópico que tende a passar despercebido, para que o leitor, ao imigrar, já vá sabendo que depois de alguns anos, pode fazer a decisão de ter um guaraná depois de andar o cachorro, ou de ouvir Araketu no último volume.

Tammer Castro é mestre em Linguística pela Florida International University e atualmente é pesquisador doutorando na Arctic University of Norway, em Tromsø, Noruega. Clique aqui para ouvir as entrevistas que o Tammer concedeu a O Nome Disso É Mundo.

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Escrito por Filipe Teixeira

Escritor amador e ansioso profissional.